se deixarmos as ruas e entrarmos numa das igrejas da cidade, apercebemo-nos do espaço de que os mortos usufruíam, comparado com aquele de que usufruem os vivos actualmente. no ano de 1737, um homem chamado howard morreu e foi enterrado em st. mary-le-bow. a lista das suas virtudes ocupa toda uma parede. «ele foi abençoado com uma mente inteligente e sã, que brilhou conspicuamente no exercício de grandes e divinas visrtudes... numa era de depravação, foi sempre e inviolavelmente fiel à justiça, à sinceridade e à verdade.» (...)
parai, reflecti, vigiai os vossos actos - assim nos avisam e exortam sempre estas velhas lápides. uma pessoa sai da igreja maravilhada com os desafogados dias em que cidadãos desconhecidos podiam ocupar tanto espaço com os seus ossos e requerer, confiantes, tamanha atenção para as suas virtudes, enquanto nós - veja-se como nos acotovelamos, como nos fintamos, como evitamos o contacto nas ruas da cidade veja-se como cortamos as esquinas, a ligeireza com que nos deixamos atropelar pelos automóveis. o mero processo de nos mantermos vivos exige de nós a máxima energia. não temos tempo, íamos dizer, para reflectir sobre a vida e a morte, quando de repente deparamos com as enormes paredes de st. paul. aqui está ela novamente, elevando-se sobre nós, imensa, montanhosa, mais fria, mais cinzenta e silenciosa do que nunca. e assim que entramos experimentamos essa suspensão, essa dilatação, essa libertação da pressa e do esforço que a catedral de st. paul, mais do que qualquer outro edifício no mundo, tem o poder de transmitir.
virginia woolf, londres, trad. josé miguel silva, lisboa, relógio d'água, 2005