cut your hair*
quando fosse grande queria ser cabeleireira.
queria fazer aos outros o que não podia fazer porque o meu cabelo era comprido ou muito comprido, obediente ao orgulho materno. e liso, paradíssimo como a minha inércia.
comecei nas bonecas. nunca tive bonecas que falassem, sequer chorassem quando lhes mudava o penteado. cortava-lhes cabelos ou encorajava-lhes a rebeldia com guaches de cor cião, numa vingança fraca de não ser loura.
um dia desisti da escola e a minha mãe aborreceu-se porque sempre me quis professora e confiava que em pequenas todas as meninas queriam ser cabeleireiras mas que depois cresciam, eu confiava que havia de manejar as armas de corte como se fossem de defesa.
houve uma tarde de agosto em que o ar condicionado do salão avariou e a dona rosário, de rolos e touca, se queixava das páginas da nova gente coladas às pontas dos dedos suados, que assim não pode ser, devíamos deixar a porta aberta para correr uma aragem, está calor em todo o lado, e mais na minha cabeça. foi quando tive a certeza que o secador não avariou como o ar condicionado e que funcionava com a eficácia dos dois aparelhos. ao sair do salão, de permanente a dona rosário só levou umas marcas de queimaduras no couro cabeludo.
nessa dia, sem que eu pedisse, deixaram-me sair mais cedo e nem pude guardar as moedas que a dona amélia, já de cabelo lilás pronto para o chá e a inveja das amigas na pastelaria do fundo da rua, me deitou no bolso do avental como a atirá-las para um poço e, num desejo maternal, a pedir-me «vê lá se hoje perdes a novela e vais ao cinema com um simpático».
mudei de um t1 pequeno para um t1 mais pequeno, no outro lado da cidade, onde nunca tinha penteado ninguém, e empreguei-me no salão da irmã da minha madrinha.
agora lavo cabelos e o pior que acontece é uma espumazinha a chorar da testa até ao olho, como do mar para o rio, ou a lamber a orelha num odor de maçã.
gosto quando as senhoras fecham os olhos e ficam ali, esquecidas de que lhes aponto uma pistola de água à cabeça enquanto morrem um bocadinho aos suspiros, mais belas, meio adormecidas meio a pensar no que vão fazer para o jantar e se o manuel, o pedro ou o joaquim vão reparar que pintaram o cabelo, que estão mais loiras do que as mulheres dos jogadores da bola e mais novas do que a empregada de decote florescente do café.
queria fazer aos outros o que não podia fazer porque o meu cabelo era comprido ou muito comprido, obediente ao orgulho materno. e liso, paradíssimo como a minha inércia.
comecei nas bonecas. nunca tive bonecas que falassem, sequer chorassem quando lhes mudava o penteado. cortava-lhes cabelos ou encorajava-lhes a rebeldia com guaches de cor cião, numa vingança fraca de não ser loura.
um dia desisti da escola e a minha mãe aborreceu-se porque sempre me quis professora e confiava que em pequenas todas as meninas queriam ser cabeleireiras mas que depois cresciam, eu confiava que havia de manejar as armas de corte como se fossem de defesa.
houve uma tarde de agosto em que o ar condicionado do salão avariou e a dona rosário, de rolos e touca, se queixava das páginas da nova gente coladas às pontas dos dedos suados, que assim não pode ser, devíamos deixar a porta aberta para correr uma aragem, está calor em todo o lado, e mais na minha cabeça. foi quando tive a certeza que o secador não avariou como o ar condicionado e que funcionava com a eficácia dos dois aparelhos. ao sair do salão, de permanente a dona rosário só levou umas marcas de queimaduras no couro cabeludo.
nessa dia, sem que eu pedisse, deixaram-me sair mais cedo e nem pude guardar as moedas que a dona amélia, já de cabelo lilás pronto para o chá e a inveja das amigas na pastelaria do fundo da rua, me deitou no bolso do avental como a atirá-las para um poço e, num desejo maternal, a pedir-me «vê lá se hoje perdes a novela e vais ao cinema com um simpático».
mudei de um t1 pequeno para um t1 mais pequeno, no outro lado da cidade, onde nunca tinha penteado ninguém, e empreguei-me no salão da irmã da minha madrinha.
agora lavo cabelos e o pior que acontece é uma espumazinha a chorar da testa até ao olho, como do mar para o rio, ou a lamber a orelha num odor de maçã.
gosto quando as senhoras fecham os olhos e ficam ali, esquecidas de que lhes aponto uma pistola de água à cabeça enquanto morrem um bocadinho aos suspiros, mais belas, meio adormecidas meio a pensar no que vão fazer para o jantar e se o manuel, o pedro ou o joaquim vão reparar que pintaram o cabelo, que estão mais loiras do que as mulheres dos jogadores da bola e mais novas do que a empregada de decote florescente do café.
*pavement
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