Monday, May 22, 2006

on the road

o autocarro é um bicho de patas gordas e gulosas de quilómetros, mas frágeis como as solas de uns all star.
de manhã dou um bom-dia ao motorista, que antes de ir trabalhar vou para lisboa. se o reencontro no fim do dia, dou-lhe um sorriso mordido pela maldição do recolher — quantas vezes obrigatório — a casa.
a parte mais atravessada dos dias é quando saio da cidade pela faixa do bus e à esquerda todos os carros me ultrapassam para destinos que imagino mais próximos, mais felizes.
durante dezassete quilómetros o tejo é verde, azul e cor de terra, e sobre o alcatrão trepida-me a caligrafia com as suas ondas pequenas de rio, pouco mais excitado do que um lago.
pela estrada, o lá-fora repete-se, e insisto em olhar pela janela, à procura das sete diferenças. hoje é mais cedo e uma árvore inclina-se ainda para o sol. num caminho de terra batida, um miúdo sem cansaço corre à velocidade de obikwelu com uma câmara-de-ar. as agulhas de todos os pinheiros tocam-me baixinho um highway 12 revisited que o dylan não escreveu. a rapariga no meu banco leva o lobo antunes ao colo, a rapariga no banco ao lado lê o freakonomics, mas isso não é diferença, eu sou sempre o alguém ao lado de quem lê esse livro. «não se zanga, se eu lhe disser uma coisa?», diz-lhe o homem vizinho, «é que ler assim no autocarro faz mal.» ela sorri-lhe um «pois, eu sei», sabe que não ler em lugar nenhum faz muito pior.
última paragem, terra do nada, há correspondência com o castelo, a serra e o rio. saio para a rua, para casa, para o quarto. no computador sobre a singer que herdei sem que ninguém tenha morrido, sou costureira. dou ao pé com música e imperfeição, coso verbos e preposições, descoso adjectivos, remendo textos de retalhos, a tentar que trapos se pareçam, se não com alta costura, pelo menos com pronto-a-vestir.

4 Comments:

Anonymous Anonymous said...

quantas t-shirts suaste?*

4:45 am  
Blogger Rita said...

perfect :)

9:54 am  
Blogger Pedro Santo Tirso said...

belo texto

12:32 pm  
Anonymous Anonymous said...

o autocarro é um bicho de patas gordas e gulosas de quilómetros, mas frágeis como as solas de uns all star.

Não se via nada assim desde o "bacalhau quer alho" do pequeno Saul.

10:53 pm  

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