Saturday, March 15, 2008

20-9-1994

A verdade é que não gosto muito de elogios fúnebres (na verdade, não gosto muito de elogios, mas pode ser por não saber reagir-lhes com graça), a verdade também é que aniversários de morte são momentos de memória como quaisquer dias que não são aniversário de nada. A verdade é que podia começar muitas frases por «a verdade é que» porque a verdade é muitas coisas.
Como se os calendários escolhessem quando nos lembramos das pessoas, dias antes de fazer anos que o meu avô, o materno, morreu, pensei escrever sobre ele — para o lembrar, para não esquecer o pouco que guardo dele, memórias difusas e infanto-juvenis das visitas aos domingos, do ananás que apreciava à sobremesa, das saídas a desoras para a caça, da nota que dava aos netos para carrosséis e algodão-doce quando íamos à feira e nos entretínhamos com bolinhas saltitonas e reco-recos.
Pensei-o perto do dia em que ele faria anos, penso também noutros dias por razões concretas e sem aviso.
Achava-o bonito, mas talvez seja orgulho de neta, porque me lembro dele numa idade em que a beleza já não distingue os homens (não acredito no que acabei de escrever).
Era o homem da casa, fazia a barba como quem preside a uma cerimónia, mas sentava-se em qualquer lugar da mesa. Andava de boné à banda, por causa do sol e do frio, com cajado e uma cadela Macaca, feia e arreganhada como me assustava, para dar o norte às ovelhas.
Aos domingos levava-lhe sobremesa, e um domingo comecei a levar-lhe flores ímpares aonde não há ciprestes nem árvores altas ou soturnas. Há figueiras e uns arbustos floridos de branco e cor-de-rosa, como antes à porta de casa (nunca lhes soube o nome e no Jardim Botânico não têm bilhete de identidade).
Deitámo-lo sob a terra como sobre a qual dormia sestas, ao lado do Arlindo e perto de onde repousa a Maria da República, nascida em 1910, porque viver todos os dias cansa. Nunca vi quem os visitasse, mas, afinal, são os mortos que nos visitam.

Agora sem citações

Gostava de chegar ao fim e isto fazer sentido. Gostava de dizer, e que fosse verdade, que me entretenho com uma natureza morta e a decomponho e volto a arrumar a fruta e, ainda de cesto cheio, colorido, lhe espremo um sumo nutritivo, de laranjas e adjectivos mais ácidos, cascas duras e corações moles. Penso muito, pela calada, numa passividade de observadora, e penso muito em escrever, quando leio, quando acordo, quando nunca mais adormeço. Penso por nada e sem relevância, fico às aranhas, como uma barata tonta, num ritmo de lesma e hesitação (espantada por de lenta a lesta só ir uma fricativa e lerda ficar ainda a uma oclusiva oral de distância) e, a avaliar pela gradação das expressões que me ocorrem, estou certa de que escrever é um trabalho sujo, mas já em pequena eu gostava de pisar as poças.

Eu que me comovo por tudo e por nada #37

Ainda era feio escrever com caneta vermelha e eu já extasiava quando a professora, depois do ditado, instruía: «Agora troquem os cadernos e corrijam.»